E se tentarmos?

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

O Egoísmo

“Afirmar que os seres humanos podem determinar a sua própria evolução é pôr a vontade de Deus fora do esquema. Isso contribui para que as pessoas sejam egoístas e vivam separadas umas das outras. Acabam por pensar que o importante é a sua própria evolução e não o plano de Deus.Vão-se tratar umas às outras pior do que se tratam agora.”

in a Profecia Celestina, de James Redfield

A Igreja sempre passou a mensagem de que tanto o que já passou como o que está para vir depende exclusivamente da vontade de Deus. Durante séculos, esta ideia prevaleceu, sendo que para muitos fiéis cristãos ainda hoje é aceite.

No entanto, desde o fim da Idade Média, que a nossa civilização, aquela de que guardamos memórias¹, vem alterando esta forma de pensamento. Para isso, tem procurado respostas em relação ao nosso lugar no mundo. Procurou-as por não estar satisfeita com as respostas até então aceites, aquelas que advinham todas da mesma fonte: Deus.

O Homem apercebeu-se que podia ele próprio controlar os elementos, as matérias, as doenças, pelo que questionou o papel da Igreja. Assim, com o aparecimento do conhecimento e método cientificos, o Homem “inventou” uma nova religião, que se prestou a tentar dar resposta a todos os mistérios que nos assolavam.

Porém, essas tão ambicionadas respostas tardaram em chegar (se formos a ver, ainda não as temos), pelo que, gradualmente, foram sendo esquecidas. Este esquecimento originou a implementação de novos valores, que são os pais dos valores que hoje regem o mundo: o Poder, o Dinheiro, que degeneraram em Egoísmo e Ganância.

Hoje em dia, é comum dizer-se “sou livre de fazer o que quero” ou “o importante é o ordenado”. Sendo os valores materiais os mais importantes aos olhos da nossa sociedade actual, o excesso de aparente liberdade de que dispomos apenas potencia esta situação. O Egoísmo e a Ganância entranharam-se na grande maioria dos seres humanos. O problema, é que não se entranharam apenas nos cidadãos comuns, mas também em grandes centros de poder.

Resultado desta situação, são todas as guerras que vêm sendo travadas com segundas intenções, mostrando um total e inequívoco desrespeito pela vida humana. Exemplos? Há-os em demasia... e não é necessário recuar até épocas passadas, basta falar do presente. Quem viu o Farenheit 9/11 decerto se recordará da passagem que menciona o quão conveniente foi o bombardeamento de certas zonas do Afeganistão, para a construção de um oleoduto que trará lucros a alguém, infelizmente não ao povo que teoricamente seria o dono dessas terras. Depois do bombardeamento, as obras puderam ter início, pois uma grande parte do trabalho, que seria abrir caminho para a passagem dos canos, já estava adiantada. Mais exemplos? A vontade assumida pelos EUA de tirar do poder o ditador Saddam Hussein, com a intenção declarada de devolver o poder ao povo (gesto nobre, este), que passado mais de um ano, ainda não o recebeu. No entanto, como consequência indirecta (será?), os novos ditadores (porque não há duvidas de que o poder, ao não ter sido passado para as mãos do povo, foi tomado por um novo regime ditatorial, que nem sequer pretende que todas as zonas do Iraque votem para a eleição do novo governo, suportando esta decisão no facto dessas regiões estarem ainda conturbadas, pelo que foi assim considerado que se estas regiões – outrora em paz – não conseguem resolver os seus conflitos, não estão em condições de votar num pretenso regime democrático – isto sim é democracia) não só assumiram o controlo do petróleo existente no país, como também ganharam um bode espiatório (outrora um aliado importante) para o todo mal que foram fazendo ao longo de duas décadas. Mais uma vez, quem devia ter ganho com a situação, os habitantes locais, só perdeu...

Assim, urge instituir um novo tipo de luta, uma jihad contra o Egoísmo e o Cinismo vigentes. Luta esta que não deverá ser travada com recurso às armas e à violência, mas sim com recurso à mudança de mentalidades, com um abrir de olhos geral, que despertará gradualmente as pessoas para a realidade, da qual temos andado todos alheados, devido ao nosso materialismo e egoísmo.

Durante anos, não quisémos nem saber dos problemas dos outros, preocupados que andavamos com os nossos trabalhos frustrantes, com a aquisição dos nossos automóveis problemáticos e das nossas casas medíocres. Mas acredito que estamos a chegar a um ponto, em que todos começaremos a despertar para a realidade. A venda que nos foi colocada nos olhos, tendencialmente desaparecerá. Porque andamos, na nossa grande maioria, descontentes com as nossas vidas, questinamos as nossas decisões passadas, não gostamos do rumo que as nossas vidas tomaram. A felicidade, paz de espirito e harmonia que ambicionámos estão longe de terem sido atingidas.

A juntar a isso, vamo-nos apercebendo de que as doenças da sociedade, em vez de assistirmos à sua cura, continuam a lavrar, ceifando almas que não se quiseram agarrar à vida. Talvez se acreditassem haver um sentido para a sua existência... exemplos, infelizmente, cada vez temos mais: os street racers, que continuam a correr e a morrer por uma dose de adrenalina; as drogas, cujo consumo não diminui; os comportamentos de risco nas estradas que apesar de mutilarem familias, alterando destinos, não param de aumentar...

Assim, impõe-se criar uma nova consciência colectiva, que possa sanar os nossos problemas. E quais serão os valores base desta nova consciência? Basicamente, serão os mesmos que estão na base de todas as religiões do mundo: o respeito pelo próximo (mesmo que o próximo seja diferente de nós) e uma coexistência pacífica entre as pessoas. Aqui, poderá haver quem argumente que as próprias religiões incitam às guerras, ao desentendimento e ao preconceito. Discordo, quem a isto incita são pessoas que se aproveitam das crenças de fiéis, orientado-as em proveito próprio.

Teremos de confiar nas nossas intuíções, confiar em nós próprios (capacidade que praticamente eliminámos, pois delegámos a função de sermos respeitados ao nosso emprego, ao carro que conduzimos e ao local onde moramos), e acreditar que o que damos recebemos em troca. Podemos ter preconceito em relação à família de negros que vive no nosso prédio, que ao sentir-se ostracizada não terá qualquer problema em nos incomodar. Pois se já partimos do principio que se vão comportar erradamente, não se sentirão na obrigação de nos provar o contrário. Mas se, por outro lado, os respeitarmos como nossos semelhantes (que são!), para se integrarem no microcosmos que os acolheu (neste caso um prédio) sentirão a necessidade de não rejeitar o respeito e (porque não?) o amor que receberam. Assim, retribuirão.

Outra forma de mudança passa por educarmos as nossas crianças também como nossos semelhantes. É um lugar comum, mas as crianças são efectivamente o nosso futuro. Assim, porquê passar anos a tratá-las como se não percebessem as coisas? Porquê passar anos a mentir-lhes acerca de assuntos que certamente compreenderiam, desde que lhes fossem transmitidos de uma forma acessível e inteligível para a idade? Voltamos então à questão do respeito. Se os pais tratam as crianças como seres inferiores, não podemos esperar que estas cresçam sentindo confiaça em si próprias e seguras de si. O que origina os tão falados comportamentos de risco, que pura e simplesmente passam por uma necessidade de afirmação face à forma como são tratados. Fumam para se sentirem crescidos, experimentam drogas para se sentirem integrados, e esparvoam com os pais e professores para se imporem enquanto seres humanos, que pensam e existem! A solução para todos estes problemas passa não por reprimendas (pois como o próprio nome diz, pretendem reprimir, quando o que os seres humanos necessitam é de crescer e se expandir), mas sim por respeitar, passa por amar. E mais uma vez, aquilo que damos, receberemos em troca.

Talvez seja então altura de abrirmos os olhos, retirarmos o filtro do politicamente correcto e socialmente aceite que nos minou a percepção do mundo, e permitirmos serem o respeito e o amor a conduzir a nossa existência. Só desta forma poderemos ambicionar evoluir enquanto seres humanos, sentindo-nos de novo (ou finalmente) integrados na realidade, pois se cada geração deve representar um passo em frente em relação à que a antecedeu (esta sim é a nossa missão, a nossa razão de existir), então acredito que o passo que nos compete (o que representa efectivamente uma evolução em relação à situação anteriror) será indubitávelmente o de potenciar uma coexistência pacífica entre todos indivíduos, em todos os locais. Imaginem o que teriamos a ganhar...
Imagine all the people
Sharing all the world...
You may say I'm a dreamer,but Im not the only one,
I hope some day you'll join us,
And the world will live as one
¹ Pois, porque não nos podemos esquecer que pelo simples facto de quase todos os registos históricos de que dispomos dessa época se reportarem à nossa sociedade (à Europa, citando os exemplos da Inquisição e dos Descobrimentos), em todo o resto do mundo, e em simultaneo, os dias continuavam a passar, familias continuavam a crescer, religiões e crenças a se desenvolverem, toda uma história paralela que apenas nos vai sendo contada fragmentada se ia desenrolando. Daqui se depreende ser prepotência nossa querer que apenas a nossa História e os nossos conceitos sejam válidos.